Para Compreender Fernando Pessoa e os seus heterónimos…
Leia a Carta que Fernando Pessoa escreveu ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro - A Gênese dos Heterónimos
A GÊNESE DOS HETEÓNIMOS* (1935)
“TIVE SEMPRE, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construí¬dos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro das suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isola¬da e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meu sonho — um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pas — e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles - é uma das grandes saudades da minha vida.
Isto parece simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição de vida a bonecos ou bonecas. Era porém mais: eu não precisava de bonecas para conceber intensamente essas figuras. Claras e visíveis no meu sonho constante, realidades exata¬mente humanas para mim, qualquer boneco, por irreal, as estraga¬ria. Eram gente.
Além disto, esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se com o crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural do meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.
Trata-se, contudo, simplesmente do temperamento dramático elevado ao máximo; escrevendo, em vez de dramas em atos e ação, dramas em almas. Tão simples é, na sua substância, este fenómeno aparentemente tão confuso.
Não nego, porém — favoreço, até —, a explicação psiquiátrica, mas deve compreender-se que toda a actividade superior do espírito, porque é anormal, é igualmente susceptível de interpretação psiquiátrica. Não me custa admitir que eu seja louco, mas exijo que se compreenda que não sou louco diferentemente de Shakespeare, qual¬quer que seja o valor relativo dos produtos do lado são da nossa loucura.
Médium, assim, de mim mesmo todavia subsisto. Sou, porém, me¬nos real que os outros, menos coeso (?), menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia — 13 de Março de 1914 — quando, tendo “ouvido pela primeira vez” (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do Guardador de Rebanhos, imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a Chuva Oblíqua (Orpheu 2), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa. “
EM SÍNTESE: Pessoa e a Heteronímia
Para o poeta, a própria criação dos heterónimos não passa de um jogo. É certo que o próprio radica a origem dos seus heterónimos na tendência que tinha em criança de criar companheiros imaginários para brincar. Mas a verdade é que já então, como agora na literatura, se tratava de um jogo. Os heterónimos são o travejamento do grande jogo artístico de Pessoa.
Cada heterónimo que surgia correspondia não só a uma determinada posição ideológica e artística de Pessoa, mas também a um modo diferente de escrita.
A maior e mais genial das metáforas criadas por Pessoa foi o ter-se instituído multiplamente como vários poetas diferentes, sem deixar, no entanto, de ser “ele”. O fingimento é a mola mais poderosa da sua poesia, e o ponto mais alto do seu fingimento está na sua despersonalização nos vários heterónimos, na criação do seu “drama em gente”. Os heterónimos são o travejamento do seu cosmos poético.
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