Os Lusíadas e Mensagem
Semelhanças entre a Mensagem e Os Lusíadas. Parece simples dizer que são ambas semelhantes em propósito, como obras de exaltação nacional, mas essa simplicidade esconde – se quisermos procurar é claro – uma complexidade imensa. António Quadros, um estudioso de Pessoa diz da Mensagem que esta é um “poema nacional, uma versão moderna, espiritualista e profética d’Os Lusíadas” (Fernando Pessoa, Vida, Personalidade e Génio, p. 249, Publi. D. Quixote). Será assim? O próprio Quadros mais à frente vai assumir que na realidade o que poderá ser confundido com nacionalismo, com exaltação dos valores do que constituiria a alma nacional portuguesa, acaba por não constituir o tema principal da obra de Pessoa.
Devemos ver as duas obras magnas da literatura poética portuguesa, Lusíadas e Mensagem, como obras situadas no início e no terminus do grande processo de dissolução do Império, como bem indica Jacinto do Prado Coelho «D’Os Lusíadas à Mensagem», in Actas do 1.º Congresso Internacional de Estudos Pessoanos; Brasília Editora; p. 307). O humanismo presente n’Os Lusíadas, que se traduz num povo escolhido por Deus para estender um império cristão para Sul, é o mesmo humanismo que traduzido no modernismo dos anos 30 do século XIX vê o homem como instrumento misterioso da mesma obra, embora enquanto homem solitário e já não tanto como povo. Mas uma diferença é crucial, como bem indica Prado Coelho: Camões exorta um D. Sebastião ainda vivo, ciente que está de um Império que embora em perigo pode ainda sobreviver e renovar-se, enquanto que Pessoa exorta um D. Sebastião morto, feito já mito e esperança. Seja como for, aqui também está uma semelhança fundamental: ambos os poemas não são saudosistas, mas sim exortativos, renovadores, impetuosamente corajosos. O que os distancia, aproxima-os, de certa maneira. Isto porque, se estudarmos mais fundo as motivações de ambos os poetas, encontraremos – pelo menos parecem ter encontrado os estudiosos – rios antigos com leitos misteriosos. Esses rios chamam-se Sebastianismo, Quinto Império, Mitogenia… De facto, mais do que apenas um império material, da conquista, do ouro e dos escravos, o Império significa tanto para Camões como para Pessoa, um desígnio maior, mais misterioso. O Quinto Império, noção nascida da Bíblia na famosa profecia de Daniel sobre o sonho de Nabucodonosor, é desenvolvida por eles, assim como por outro dos maiores vultos da cultura portuguesa de todos os tempos: o Padre António Vieira, na sua História do Futuro. A intervenção divina na história nacional é tão antiga como a própria nacionalidade e embora a ideia do Quinto Império seja ainda pouco clara em Camões, ela é já plena e poderosa em Pessoa. Se de facto D. Sebastião foi indigno da esperança que nele depositou Camões, esse é um facto posterior à própria obra, e não pode ser indicado como a afastando de um teor marcadamente Sebastianista.
Enquanto Os Lusíadas são a exortação pura, do D. Sebastião presente, da esperança na renovação do Império decadente, a Mensagem é a exortação do mito Sebastianista, do rei morto e agora feito apenas futuro. De facto, Pessoa na Mensagem analisa o mito, o mito extirpado de qualquer vestimenta material e humana (assim o diz: António Quadros, Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Guimarães Editores, p. 111). Para Pessoa, o Sebastianismo é a religião nacional, fundada num mito que nos é familiar, mais familiar do que o mito judeu do cristianismo. Quando Pessoa grita, no íntimo das suas observações perdidas na sua arca, diz “abandonemos Fátima por Trancoso”, Trancoso, terra do Bandarra, místico português, sapateiro de profissão, Nostradamus pobre e desconhecido da Europa, mas foco de uma esperança forte porque nossa, imensa porque nacional e redentora. E na realidade que Império era este que ainda se esperava, mas que nunca se concretizava? É o Império Espiritual, o Império que não da carne, mas do espírito. Relembre-se o canto I, 24, linhas finais: “Que por ele se esqueçam os humanos de Assírios, Persas; Gregos e Romanos”. Parece descobrir-se que afinal, a busca do Quinto Império, é a própria busca do superior patamar da alma portuguesa; eis porque no fim, Pessoa substitui o Cristo por D. Sebastião: “Que símbolo final mostra o sol já desperto? Na cruz morta e fatal a Rosa do Encoberto” (in Mensagem). O encoberto, figura agora mítica, por encarnar num redentor, que Pessoa por um tempo pensou ser Sidónio Pais, presidente da primeira república, depois ele-mesmo Fernando Pessoa, como o Super-Camões impulsionador do Império Cultural (relembre-se que Pessoa fala desta figura, do Super-Camões nos seus primeiros artigos para revistas, Circa 1912). Depois ter-lhe-ão faltado as forças, e o Desejado fica o Desejado imaterial, por se realizar, senão em vagas orações sibilantes.
Regressando a Prado Coelho, vemos que o Sebastião de Camões é viril e aventureiro, á moda das histórias de cavalaria da época, do Amadis. O Sebastião de Pessoa é já o mito, despido de vestes humanas, humilhado, feito arrependimento e tortura do espírito. Eis por que a Mensagem seja talvez mais súplica do que Os Lusíadas, e por isso menos grandiosa, mais ocultista e hermética. Há esperança n’Os Lusíadas, utopia na Mensagem. Se é certo que Os Lusíadas não são meramente descritivos enquanto epopeia de feitos passados, pois na epopeia há uma análise e uma prognose, a Mensagem é ainda mais cerebral, mais simbólica, esguia e simbolista. Embora haja personagens na Mensagem, não os há como n’Os Lusíadas, porque o que importa na Mensagem é desenvolver um pensamento, uma ordem de pensar o futuro em função do passado (Pessoa censura isso mesmo a Camões). Se em passagens a Mensagem é também épica; relembrem-se o “Mar Português” ou o episódio do “Monstrengo”, que se opõem com sucesso ao “Adamastor” de Camões, nunca é despicienda em Pessoa a referência a personagens históricos. Nunca Pessoa os refere sem os enquadrar numa ordem superior de processos, num esquema maior, secreto, à maneira de um plano arquitectónico, tão ao gosto da simbologia franco-maçónica.
Prado Coelho conclui de maneira lapidar a sua análise, no estudo já referido: “Em contraste com o realismo d’Os Lusíadas (…) a Mensagem reage pela altiva rejeição a um «Real» oco, absurdo, intolerável, propondo-nos em seu lugar a única coisa que vale a pena: o imaginário” (p. 315). “Sem a loucura que é o homem mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?” (Mensagem).
Bibliografia breve:
António Quadros, Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Guimarães Editores
António Quadros, Fernando Pessoa; Vida, Personalidade e Génio, Publ. D. Quixote
Actas do 1.º Congresso Internacional de Estudos Pessoanos; Brasília Editora
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