PROCESSOS DE CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
a)Directa – dada pelas palavras que as personagens produzem acerca de si próprias (auto-caracterização) e pelas palavras de outras personagens (hetero-caracterização).
b)Indirecta – deduzida pelo espectador a partir das atitudes, das ações e até das próprias palavras (na medida em que revelam procedimentos) das personagens.
Como é próprio da tragédia clássica, as personagens são nobres (aristocráticas), sempre revelando grande dignidade. O próprio Telmo, um serviçal, nunca perde o aprumo e a dignidade.
Todas as personagens se podem considerar, embora em diverso grau, modeladas. Na verdade, é o conflito interior, a profundidade, a riqueza psicológica das personagens que cria nesta obra a tensão dramática com características trágicas.
AS PERSONAGENS
D. Madalena de Vilhena
“Em tudo o mais sou mulher, muito mulher.”
Esta afirmação de Madalena é uma exata auto-caracterização de uma personagem romântica. Na realidade, D. Madalena foi sempre dominada pelo sentimento do amor. Religiosa, sim, mas não compreendia que o amor de Deus pudesse exigir o sacrifício do amor humano. Amava a filha, sim, mas o amor de mulher (para com Manuel de Sousa) era superior ao amor de mãe. D. Madalena tinha 17 anos quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir. Durante 7 anos procurou-o. Há catorze anos que vive com Manuel de Sousa Coutinho. Tem agora 38 anos (17 + 21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia do seu amor. Racionalmente, não acredita no mito sebastianista que lhe pode trazer D. João de Portugal, mas teme a possibilidade da sua vinda. É com medo que a encontramos a refletir sobre os versos de Camões e a sentir, como que em pesadelo, a ideia de que a sobrevivência de D. João destrua a felicidade da sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se pressentimento, dor e angústia. É neste terror que se vê na necessidade de voltar para a habitação onde com ele viveu.Senhora virtuosa, como convinha à sua dignidade social, mas essa virtude oscilava entre a realidade e a aparência (amou o segundo marido ainda quando vivia com o primeiro).
Uma mulher bem-nascida, da família e sangue dos Vilhenas, cujos sentimentos dominam a razão:
- O sentimento do amor à Pátria é praticamente inexistente: considera a atitude dos governadores espanhóis como uma ofensa pessoal;
- Para ela, é inaceitável que o sentimento do amor de Deus possa conduzir ao sacrifício do amor humano, não compreendendo, nem aceitando a atitude da condessa de Vimioso que abandonou o casamento para entrar em votos: isto explica que, até ao limite, tente dissuadir o marido da tomada do hábito, só se resignando quando tem a certeza de que ele já foi.
Apesar de se não duvidar do seu amor de mãe, é nela mais forte o amor de mulher, ao contrário do que acontece com Manuel de Sousa Coutinho, que se mostra muito mais preocupado com a filha do que com a mulher.
A consciência da sua condição social mantém a sua dignidade, mas tal não a impediu de ter amado Manuel de Sousa ainda em vida de D. João de Portugal e de ter casado com aquele sem a prova material da sua morte.
Pecadora: o nome “Madalena” evoca a figura bíblica da pecadora com o mesmo nome.
Torturada pelo remorso do passado: não chega a viver o presente por impossibilidade de abandonar o passado.
Manuel de Sousa Coutinho
(mais tarde Frei Luís de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo, que queima o seu próprio palácio, para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os sentimentos, por vezes, estes sobrepõem-se quando se preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido. Antes do aparecimento do romeiro, Manuel de Sousa era um herói clássico. Guiado sempre pela razão, enfrentava os acontecimentos com serenidade, deliberando sempre à luz de uma ordem de valores aceites universalmente: a liberdade, a moral, a honra, o nacionalismo.
Depois do aparecimento do Romeiro, a razão de Manuel de Sousa deixa-se perturbar pela emoção, revelando-se aqui esta personagem mais romântica do que clássica. Veja-se, por exemplo, a cena I do ato III, em que as suas palavras revelam, em tom verdadeiramente trágico, a violência incontrolável da emoção.
No ato I, assume uma atitude condizente com um espírito clássico, deixando transparecer uma serenidade e um equilíbrio próprios de uma razão que domina os sentimentos e que se manifesta num discurso expositivo e numa linguagem cuidada e erudita:
Revela-se patriota, corajoso e decidido;
Não sente ciúmes pelo passado de Madalena;
No ato III, evidencia uma postura acentuadamente romântica: a dor, após a chegada do Romeiro, parece ofuscar-lhe a razão, tal é a forma como exterioriza os seus sentimentos, fazendo-o de uma forma um tanto violenta, descontrolada e, por vezes, até contraditória (a razão leva-o a desejar a morte da filha e o amor impele-o a contrariar a razão e a suplicar desesperadamente pela sua vida);
Pode-se, pois, concluir que esta personagem, do ponto de vista psicológico, evolui de uma personalidade de tipo clássico (atos I e II) para uma personalidade de tipo romântico (ato III).
Maria de Noronha
Tem 13 anos, é uma menina bela, mas frágil, com tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião regressará. Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente. Será ela a vítima sacrificada no drama.Menina inteligente e imaginativa, influenciada pela intranquilidade inevitável da mãe e pelo sebastianismo de Telmo, também ela vivia no pressentimento de que qualquer coisa de terrível está eminente sobre a família. Daí a sua fantasia incontrolável e a sua curiosidade invencível.
Maria não nos aparece nunca como uma personagem real, tal o grau de idealização em que foi concebida. Angélica como uma criança e perspicaz como uma adulta, Maria não se impõe ao espectador (ou leitor) como uma criança real.
Uma personagem idealizada:
a ingenuidade, a pureza, a meiguice, o abandono, etc., próprios duma alma infantil, e a inteligência, a experiência, a cultura, a intuição, características de um espírito adulto, confluem numa personagem pouco real, só entendida à luz do desvelo que Garrett votava a sua filha Maria Adelaide e à condição social que, para a mesma, resultara da morte prematura da mãe;
protótipo da mulher-anjo, tão do agrado dos românticos;
a sua dimensão psicológica resulta, por isso, contraditória, ao revelar comportamentos, simultaneamente, de criança e de adulto;
Alguns traços caracterizadores de Maria:
- ternura;
- culto sebastianista;
- dom de sibila (dom da profecia);
- cultura;
- coragem, ingenuidade e pureza;
- tuberculosa.
Culto do passado.
D. João de Portugal
No decorrer dos dois primeiros atos, é uma personagem abstrata: só existe na fantasia de Madalena, Maria e Telmo. Torna-se uma personalidade concreta quando aparece, no ato III, na figura de romeiro, concretizando assim os receios que torturavam Madalena e quando tenta mesmo interferir na ação dramática, procurando impedir o desenlace fatal.
Mesmo nesta segunda fase, como entidade concreta, esta personagem não vale por si própria, tem apenas a força simbólica que movimenta as outras personagens.
D. João de Portugal apresenta-se como um peregrino. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como "Ninguém". O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.é, pois, uma espécie de fantasma que personifica a fatalidade, o trágico destino, não em relação a si, mas em relação às outras personagens
Casado com D. Madalena, mas desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir, revela-se como:
- Uma existência abstrata (uma espécie de fantasma omnipresente) até à cena XII do ato II, inclusive, permanecendo em cena através dos receios evocativos de Madalena, da crença de Telmo em relação ao seu regresso e do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, o mesmo pode acontecer em relação a D. João de Portugal);
- Uma existência concreta a partir da cena XIII do ato II:
- regressa a Portugal ao fim de 21 anos, depois de ter passado 20 em cativeiro, em África e na Ásia, surgindo na figura do Romeiro (mesmo assim, a sua identidade só é revelada no final do ato II);
- procura interferir voluntariamente na ação dramática, tentando impedir, com a cumplicidade de Telmo, a entrada em hábito de Madalena e de Manuel de Sousa;
- acaba por assistir à morte de Maria e à tomada de hábito dos ex-cônjuges.
Telmo
Com os seus presságios, com os frequentes comentários aos acontecimentos, tudo imbuído num sebastianismo arreigado, Telmo encarna em si o papel de coro na tragédia clássica. É também confidente, sobretudo em relação a D. Madalena e Maria.
Apesar de personagem secundária, Telmo é dotado de uma certa profundidade psicológica, provocada pelo conflito interior que o divide entre a fidelidade a D. João de Portugal e a fidelidade a Maria.
Frei Jorge
Irmão de Manuel de Sousa Coutinho, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que na sua presença indicará o quadro de D. João de Portugal.É também confidente e participa com Telmo no papel próprio do coro da tragédia clássica. Ele é, porém, a personagem que contribui para que os acontecimentos trágicos sejam suavizados por uma perspetiva cristã.
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