Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A EDUCAÇÃO N’ OS MAIAS

O tema da educação é frequentemente tratado por Eça de Queirós e surge n’Os Maias como um dos principais fatores comportamentais e da mentalidade do Portugal romântico por oposição ao Portugal novo, voltado para o futuro. Eça apresenta dois sistemas educativos opostos: a educação tradicionalista e conservadora, protagonizada por Pedro da Maia e Eusebiozinho, e a educação inglesa, ministrada a Carlos.
A educação “à portuguesa” caracteriza-se pelo recurso à memorização, pelo uso da cartilha (método já desatualizado e deficiente) e do catecismo, criando uma ideologia religiosa com a conceção punitiva do pecado. Era dada especial atenção ao estudo do Latim, uma língua morta muito ligada à religião. O educando não devia estar ao ar livre, não lhe sendo permitido contactar com a Natureza; tinha de ficarem casa, superprotegido. Essa educação desvalorizava a criatividade e o juízo crítico, deformava a vontade própria através do suborno e das chantagens, acabando por arrastar indivíduos para a decadência física e moral.
A educação tradicional tornou Pedro num fraco, incapaz de solucionar os seus problemas, com uma devoção histérica pela mãe. Eusebiozinho fica tristonho e molengão, corrupto, arrastado para um casamento infeliz. O Vilaça, o Padre Custódio, a gente da casa dos Maias e a gente de Resende aprovavam esta educação deformadora, que desagradava a Afonso e ao narrador. Ao contrário de seu pai, Pedro da Maia, que perante o fracasso amoroso se suicidou, Carlos procura um novo rumo, elaborando uma filosofia de vida a que chama “fatalismo muçulmano”: “Nada desejar e nada recear”… Não se abandonara uma esperança nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com tranquilidade. Ega, autêntica projeção de Eça de Queirós, tornou-se amigo inseparável de Carlos e, tal como ele, tem grandes projetos (a revista, as “Memórias de um Átomo, “O Lodaçal”, etc.) que nunca chega a realizar. É também um falhado, um vencido da vida, que a sociedade lisboeta arrastou na sua onda de corrupção, todavia progressista e sarcasticamente crítico do Portugal do Constitucionalismo.
A educação “à inglesa” desenvolve a inteligência graças ao conhecimento experimental, que desprezava a cartilha e o catecismo. Defendia o “amor da virtude e da honra” como é próprio de um cavalheiro e de “um homem de bem”. Centrava-se na ginástica e na vida ao ar livre, proporcionando um contacto direto com a Natureza. Era dada atenção às línguas vivas, como o Inglês, em detrimento do Latim. Fortalecia o corpo e o espírito seguindo a ideia de “corpo são em mente sã”. Era uma educação rígida e metódica, apoiada por Afonso e pelo narrador, desaprovada por Vilaça, Padre Custódio, gente da casa dos Maias e gente de Resende.
Carlos da Maia preparou-se para a vida, fortalecendo o corpo, o espírito e adquirindo os valores do trabalho e do conhecimento experimental que o levaram a abraçar o curso de Medicina e projetos de investigação, de empenhamento na vida literária, cultural e cívica. A vida e ociosidade de Carlos e o sequente fracasso dos seus projetos de trabalho útil e produtivo não resultaram da educação, mas da sociedade em que se viu inserido. A Educação “à inglesa” era sem dúvida uma educação mais moderna que a tradicional, mas que vai igualmente conter lacunas. A educação britânica, cumprida exageradamente à risca, não serve no meio social português. Carlos aparece, assim, como a compensação que Afonso dá a si mesmo pelo fracasso que foi a vida do filho, fracasso esse decorrente da sua educação que nada correspondia aos ideais alimentados por Afonso. Não obstante a educação que recebeu, Carlos, tal como o pai, falha na vida com uma relação incestuosa de que sai remetendo-se ao dolce fare niente em Paris. Pedro falhou por causa da educação, enquanto que Carlos falhou apesar da educação.
(adaptado de várias fontes)

domingo, 21 de abril de 2013

O Fatalismo Muçulmano

Ao longo de Os Maias, de Eça de Queirós, encontramos o fatalismo em três sentidos próximos mas diferentes: a conceção clássica, como doutrina que admite uma força superior, um princípio ou necessidade absoluta e cega, capaz de castigar o desafio (hybris) à ordem estabelecida (por exemplo, se sofrem as personagens, é por causa do orgulho, do desafio ao velho Afonso - caso de Pedro da Maia - ou à sociedade - como sucede com Carlos); a conceção popular que entende o destino como uma espécie de divindade caprichosa e déspota que transforma tudo em infelicidade (como se vê, quando afirma que as paredes do Ramalhete foram sempre fatais aos Maias); e um "fatalismo muçulmano", que Carlos da Maia define como filosofia de vida que se resume a "Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves".
http://www.infopedia.pt/fatalismo (12/05/11)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Inserção do Autor na sua Época

Não só de inserção, mas até de imersão apetece falar neste caso. Imerso na substância cultural da sua época, dela impregnado e alimentado, assim surge Eça de Queirós em tudo quanto deixou escrito. A crítica tem insistido com significativa frequência nesta íntima relação do escritor com a sua época, que ele nitidamente reflete nas atitudes de pensamento e de sensibilidade, ao mesmo tempo que a critica, às vezes com um jeito melancólico de distanciamento.
Aliás, logo essa consonância com o tempo que vive, essa atenção ao acontecer e pensar do mundo seu contemporâneo, constitui um dos aspetos em que a personalidade do escritor melhor coincide com a mentalidade do seu tempo. O intelectual da segunda metade do século XIX, com efeito, vive agudamente a consciência da história; dir-se-ia que é o primeiro a ter, da aventura humana sobre a terra, uma larga visão, dinâmica e panorâmica; é um espírito atento ao fluir e refluir do devir histórico, e a cada momento busca, como o mareante que faz o ponto do navio, situar-se no largo mar do tempo. A história é o grande tema e o grande problema da cultura europeia oitocentista. E neste aspeto, o fino artista da palavra, sem ser historiador, revela-se mais integrado no clima cultural do seu tempo do que os outros que o foram. Porque não se trata de fazer história, mas de sentir a História. E na obra de Eça de Queirós domina, de modo incontestável, a historicidade das cenas, das personagens, das situações. Ninguém como ele para surpreender com agudeza a cor da época, o estilo inconfundível de um momento de vida, seja ele a lendária grandeza das eras homéricas, ou o tempo - decorrido havia escassos trinta anos - daquela fantástica Coimbra onde se esboçava a primeira reação contra «as literaturas oficiais», e que o humor e a saudade do romancista atiram para uma grande distância.
Um escritor autêntico - é óbvio - não adere «de fora para dentro» a uma tendência, mesmo dominadora, da época em que vive. E se, como vimos, Eça de Queirós sintoniza de modo perfeito com o século XIX no penetrante sentido do tempo histórico, isso deve-se, em larga medida, à própria qualidade do seu espírito, extremamente sensível à especificidade das coisas, àquilo que, pela boca de Fradique, ele chamava «as linhas exatas, o verdadeiro contorno da realidade», ou o «exato, real e único modo de ser» de cada fenómeno.
O sentido dos estilos - na mais ampla aceção do termo - tão peculiar da obra queirosiana, é assim ao tempo tendência de uma personalidade de artista e tributo pago ao historicismo absorvente desse século XIX em que tão profundamente imergiu. Este historicismo surge aliás como corolário do vasto movimento de ideias, espécie de explosão cultural a que o século assiste. As ciências da natureza descobrem então, com Darwin e Haeckel, para não lembrar senão dois nomes indispensáveis, perspetivas insuspeitáveis sobre a origem e a evolução da vida; as ciências do Homem, a antropologia, a sociologia, a filosofia, algumas recém-criadas, lançam o europeu na devassa do passado humano, na busca das origens, ou na dedução das leis que se supõe regerem as sociedades. No plano artístico, a descoberta ou revalorização de motivos que o Romantismo aflorava sem chegar a aprofunda-los – tudo isso aliado às novas práticas políticas e às novas técnicas que aceleram o movimento editorial, intensificam a escolaridade e assim contribuem para uma decidia democratização do saber – vai criar, ao longo do século, uma espécie de deslumbramento, quase a idolatria da chamada cultura.
Também neste aspeto Eça de Queirós se insere harmoniosamente na sua época – pois a cultura não só condiciona, como é natural, a sua criação artística através das vastas leituras e várias influências que recebeu, mas é em si mesma um tema e um problema constantemente retomado na sua obra. Eça desperta, por assim dizer, para a vida literária, sob o signo do Romantismo. E esse signo o marcará toda a vida, através da diversidade de encontros e descobertas intelectuais que irá realizando.
Ao leitor menos prevenido poderá parecer paradoxal que isto se diga de um escritor que se define como mestre e de certo modo iniciador do Realismo em Portugal; se não participou na ofensiva contra Castilho, em 1865, respirou pelo menos o ambiente espiritual onde se gerava esse ataque; de um escritor, em suma, que pertenceu à chamada «Geração de 70». Mas o próprio Eça, além do testemunho indireto que nos deixou, reiteradamente afirma, ao longo da sua vida, a importância que no seu destino de artista teve o Romantismo, não tanto enquanto estética literária como enquanto sensibilidade, atitude perante si mesmo e perante o mundo.
Aliás, para se compreender o alcance desta afirmação aparentemente paradoxal – que o grande realista ficou afinal sempre marcado pelo Romantismo - necessário se torna ter presente a complexidade do momento em que o nosso autor se inicia nas letras: Romantismo e Realismo/ Naturalismo não se sucedem, naturalmente, de forma rigidamente delimitada; e naqueles anos do meio século XIX justamente coexistiam na Europa formas extremas de inspiração romântica com afirmações cabais de um novo sentido para a literatura e a arte em geral. Importa por outro lado observar que «o romantismo continha em germe o realismo».
A escola de Coimbra não foi a princípio uma aberta reação anti-romântica; aquela geração, a de Eça, vivia ainda o culto de muitos valores românticos – o idealismo, a visão simbólica da História, o mito da alma nacional, tão presentes em Teófilo Braga e Antero de Quental. De Realismo (termo que em França surgira pela primeira vez em 1843 e que o êxito - escândalo de Madame Bovary (1857) definitivamente consagrara) quase não se fala ainda, em toda aquela Questão de Bom - Senso e Bom Gosto. Os mentores do grupo denunciam, sim, o alheamento acéfalo em que a literatura portuguesa se mantinha dos grandes problemas do seu tempo, mergulhada ainda, como dizia Balzac a respeito do romance da sua época, nas mélancolies langoureuses de 1820 ou nas Exagérations Colorées de 1830 – numa palavra, no que esses jovens consideravam estafados lugares - comuns da maneira romântica.
Aquela geração não recusava, antes pelo contrário reconhecia e estimava a herança genuína do primeiro romantismo português; admirava a naturalidade elegante e o nacionalismo esclarecido de Garrett (de quem Ramalho Ortigão ficaria devoto fiel) e a austera inteireza, o verbo solene de Alexandre Herculano (a cuja influência Antero pagou o seu tributo). Mas não ignorava que os tempos tinham mudado, que as letras pátrias tinham malbaratado a lição desses grandes mestres, e que urgia – como aliás aconselhavam todos os românticos desde Madame Stael, - fazer da literatura a expressão dos novos tempos.
Nesse espírito de revitalização do Romantismo se deve entender a poesia juvenil se Antero, tanto as Odes Modernas (1865) como até em parte a recolha que só anos depois publicaria sob o título, já então crítico, de Primaveras Românticas. Nessa poesia – daquela que Eça dizia ter-lhe ouvido declamar por certa noite de luar nas escadas da Sé Nova – o culto da energia e do esforço contra a melancolia paralisante, a esperança numa aurora de justiça e de verdade, a rebelião contra um passado de opressão e obscurantismo são a seiva que vem fazer reflorir numa sonhada primavera o velho tronco romântico, onde corria então uma linfa débil de saudosismo e sentimentalidade delinquente. Isto é, se aqueles jovens recusavam o romantismo postiço e arcaico de Castilho nem por isso eram, em 1860 ou 65, menos românticos: só que o romantismo deixara de se confinar, depois das revoluções de 1830 e 48, em França, ao lamento lírico da alma individual: animava-o um empenho de progresso, um largo humanitarismo proudhoniano, uma indignação huguesca (Victor Hugo) contra todas as tiranias, uma crença ardente na Revolução e, já sob a influência de Comte, na Humanidade.
Eça no entanto – e não é apenas o seu testemunho direto que o afirma, mas a sua obra daqueles anos que o revela – mantinha-se alheio a esse tipo de renovação. O seu romantismo daquela época (os anos em que planeia ou esboça as primeiras prosas que mais tarde chamaria «bárbaras») não é nem dos primeiros românticos portugueses, nem, evidentemente, o ultrarromantismo já cediço, a caduca e académica inspiração da «escola de Lisboa». Mas também não se identifica com o das Odes Modernas ou o das Tempestades Sonoras. Mais artista e mais divagante, mais ávido de novidade e de sensação do que qualquer dos outros, Eça vai haurir a sua inspiração em filões mais poéticos e descomprometidos do que as fontes austeras em que bebiam Antero e Teófilo (a filosofia alemã contemporânea, os doutrinadores socialistas franceses, a inspiração bíblica e profética de Herculano, Lamennais). Mas nem por isso as suas leituras são menos insólitas e revolucionárias em relação à modorra literária nacional.
O próprio Eça, nas páginas tantas vezes citadas do in Memoriam de Antero (reproduzidas em Ultimas Páginas, sob o titulo Antero de Quental) esboçou a largos traços vivos o panorama do momento cultural em que decorreram os anos da sua formação coimbrã: «Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse novo. Era Michelet que surgia, e Hegel e Vico e Proudhon; e Hugo, tornado profeta e justiceiro de reis; e Balzac, com o seu mundo perverso e lânguido; e Goethe, vasto como o universo; e Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e quantos outros! (...) E ao mesmo tempo nos chegavam, por cima dos Pirenéus moralmente arrasados, largos entusiasmos europeus que logo adotávamos como nossos e próprios: o culto de Garibaldi e da Itália redimida, a violenta compaixão da Polónia retalhada, o amor à Irlanda, a verde Erin, a esmeralda céltica, mãe dos santos e dos bardos, pisada pelo Saxónico!...
«Nesse mundo novo que o Norte nos arremessava aos pacotes, fazíamos por vezes achados bem singulares: - e ainda recordo o meu deslumbramento quando descobri essa imensa novidade – a Bíblia! Mas a nossa descoberta suprema foi a da Humanidade. Coimbra de repente teve a visão e a consciência adorável da Humanidade. Que encanto e que orgulho! Começamos logo a amar a Humanidade, como há pouco, no ultrarromantismo, se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar. Por todos os botequins de Coimbra não se celebrou mais senão essa rainha de força e graça, a Humanidade. E como num meridional de vinte anos, lírico de raiz, todo o amor se exala em canto – não houve moço que não planeasse um grande poema cíclico para imortalizar a Humanidade. (...) Não éramos, todavia, inteiramente desregrados e vãos, porque se o fim de toda a cultura humana consiste em compreender a Humanidade, já é um louvável começo discorrer sobre ela em poemas mesmo pueris. E outro bom sinal do despertar do espírito filosófico era a nossa preocupação ansiosa das origens. Conhecer os princípios das civilizações primitivas constituía então, em Coimbra, um distintivo de superioridade e elegância intelectual.», este texto, escrito bons trinta anos depois da época a que se refere, fornece dessa época a visão entre irónica e enternecida do homem maduro, trabalhado já pela experiência da vida e dos livros, que evoca «de memória», displicentemente, os entusiasmos culturais da sua geração mais do que os seus próprios.
Com efeito, por essa época, o jovem Eça deslumbrava-se sem dúvida com a leitura do pitoresco e sugestivo Michelet, (que cita em primeiro lugar, talvez no seu inalterável amor pela evocação histórica); seduziam-no o lirismo humorístico e doloroso de Heine (em tradução), as fantasmagorias de Poe, as criações eternas de Mefistófeles e Margarida, no Fausto de Goethe; e já, sem dúvida, a Légende des Siècles e Les Orientales de Vítor Hugo acordavam nele, como nos seus coetâneos, além do amor do exotismo colorido, o sentido épico da História humana... Mas é duvidoso que tivesse grande trato com a filosofia de Hegel, as teorias de Darwin ou a doutrinação de Proudhon (que, ele mesmo o revela, só veio realmente a ler anos depois em Lisboa, por instâncias de Antero).
É na verdade bem diferente o tom em que, na Carta já citada a Carlos Mayer, escrita (para ser publicada na Gazeta de Portugal) em 1867 – isto é, logo após a conclusão da formatura e saída de Coimbra, o moço folhetinista evoca, como se de águas passadas se tratasse, os seus entusiasmos de então (que, naturalmente, ainda não teriam mudado naquele curto espaço de tempo).
Nessa carta, em que o autor e a sua geração são assumidos como personagens de ficção, e que deve ser lida na íntegra e refletidamente, se quiser entender a evolução literária do jovem Eça e a influência da cultura contemporânea sobre a sua formação; nessa carta, dizíamos, Eça expressamente se inclui, e aos do seu grupo, nas fileiras dos românticos. Mas, importa sublinhá-lo, os opositores que declara defrontar não são os escritores realistas, de que ainda não dá notícia, nem mesmo os ultrarromânticos de Lisboa: são, curiosamente, os clássicos do passado, contra os quais se erguem os bardos dos novos tempos. Isto é: naquele ano de 1867, quando já em França se desencadeara o que se chamou «la bataille du Réalisme», ainda um jovem escritor português se considerava vanguardista, moderno, por pertencer a essa família de espíritos que se define em termos exaltados: «...os que desceram às regiões românticas ficaram com a alma doente, febril, ansiada, nostálgica. Aí está como explica toda essa geração moderna, contemplativa e doente. (...) Qual vale mais? Esta doença magnífica, ou a saúde vulgar e inútil, que se goza no clima tépido que vai desde Racine até Scribe? Eu prefiro corajosamente o hospital, sobretudo quando a primeira febre se chama Julieta e a última Margarida!», as suas leituras favoritas desse tempo, a darmos crédito a esta carta-folhetim tão exaltada e às vezes quase delirante, eram os astros – Shakespeare, Dante, Rabelais, S. João, Goethe e Cervantes. E tudo isto sobre um fundo de espiritualidade cristã, mais literária do que vivida. A figura de Jesus Cristo, sobretudo, era para aqueles moços, no dizer do autor, «uma aurora serena, clara, imensa, purificadora e consoladora».
No entanto, ao falar de clássicos e românticos, Eça de Queirós, neste texto, parece ter em mente não tanto classificações de história literária como, à maneira do crítico francês Sainte-Beuve que decerto já lera, categorias universais do espírito humano: assim, ele e os seus amigos pertenceriam não tanto ao período romântico como à «família» dos espíritos românticos, que o são e foram independentemente do momento cultural que vivem.
Fosse como fosse, e embora toda a vasta aluvião cultural, assim caoticamente derramada sobre ele na juventude, fosse pouco a pouco sendo decantada, e sedimentasse no espírito do moço escritor, por então o que vinha ao de cima e se moldava nas formas exuberantes e originais da sua prosa juvenil eram os sonhos dos grandes poetas românticos: os vastos quadros de pitoresco e difusa grandeza das origens, as fantasmagorias mefistofélicas, as poéticas imaginações das mitologias nórdicas, a visão pampsiquista da natureza, um gosto do macabro e do fúnebre, em que se mistura o requinte baudelairiano da podridão, o humor negro de Heine e de Poe, o sentimento – vagamente haurido em filosofias orientais e doutrinas científicas modernas apanhadas no ar – da incessante transformação da matéria, de uma série de transmigrações que levam a alma a percorrer a escala dos seres criados...
Mas em breve outras influências vieram sobrepor-se – sem as apagar em definitivo – às leituras apaixonadamente absorvidas nesta primeira fase. Renan, com a sua Vie de Jésus (1863) revelou a Eça o caminho da reconstituição histórica e rigorosa, de acordo com métodos positivistas, aplicada à época e à figura de Cristo, que, segundo o romancista afirmava em 1867, seduzira profundamente o seu círculo de amigos no tempo de Coimbra. E não podemos deixar de observar que também neste aspeto – a leitura do Cristianismo e da figura do seu fundador – Eça nos parece bem integrado no seu tempo. Ao longo do século XIX, com efeito, vemos a comovida espiritualidade dos românticos, o culto dos valores cristãos reencontrados em toda a sua poesia melancólica ombrear com o espírito «filosófico» dos enciclopedistas nunca de todo extinto, com a violência anticlerical, o ódio à igreja instituição humana, a sátira tremenda ao catolicismo romano sobretudo posterior à Contra-Reforma; e vemos o empenho na busca das origens, inerente à mentalidade positivista, aplicado à interpretação histórica e crítica do facto religiosa ao qual se nega toda a dimensão sobrenatural, vir a dar lugar, nas últimas décadas do século, a um novo despertar para o mistério, a transcendência, a poesia das crenças primitivas, e a um desejo de renascença cristã. Cristo, a sua mensagem, as interpretações e deturpações que esta sofreu ao longo do tempo são assim, durante todo o século XIX, um tema que não perde a atualidade, se exprime nesse oscilar entre fé e negação, busca de uma certeza factual que, projetando a religião na pura historicidade, dispense a fé, e logo nostalgia das crenças perdidas e aspiração a um bem que não é deste mundo; crítica demolidora das instituições e dos costumes religiosos, e logo empenho de reconstrução da Cidade de Deus, através de uma revitalização e atualização da vivência do Engenho. Tudo isto, se atentarmos bem, se vem refletir na obra de Eça de Queirós, ressoador sensível de todas as vibrações culturais do seu tempo.
A admiração por Renan, nome então extremamente prestigiosa de hebraísta, filólogo segundo os novos padrões de inspiração alemã, historiador das religiões, profundamente imbuído do seu sentido da História e do valor da cor de época, corresponde a mais uma dessas prontas respostas que a personalidade do escritor sempre deu aos estímulos da cultura europeia do seu tempo.
De regresso da sua viagem ao Egipto, em 1869, escreve as páginas brilhantes e nítidas das suas impressões do oriente, e, justamente sob a influência de Renan (que poucos anos antes visitara também a Palestina) e da Salambô de Flaubert, que lhe insulara o gosto da narrativa «arqueológica» de carácter ao mesmo tempo pitoresco e erudito, empenha-se na reconstituição da Judia do tempo de Cristo, escrevendo, sob o título de A Morte de Jesus, uma série de folhetins publicados na Revolução de Setembro em 1870, e depois incluídos nas Prosas Bárbaras.
Durante os anos de formação académica de Eça afirmara-se definitivamente em França a corrente estética conhecida por parnasianismo (em 1866 saía em Paris o 1º volume do Parnasse Contemporin – recueil de vers nouveaux).
O culto da forma, o virtuosismo poético que aparece como nota comum às obras, em outros aspetos bem diferenciadas, dos poetas do Parnaso, vinha-se impondo na literatura francesa desde há algumas décadas: surgira em pleno romantismo como reação tanto contra o lirismo confidencial, transbordante e fácil, «espontâneo» até ao desleixo, como contra a tendência (posterior sobretudo ao movimento revolucionário de 1830), para atribuir à literatura uma função cívica, fazendo da arte veículo de doutrinação moral e política, instrumento de progresso e justiça social. Saturados de desabafos sentimentais como de declarações filantrópicas e revolucionárias, os jovens poetas de 1830 pretendiam restaurar o primado da beleza formal. Vítor Hugo, no prefácio do seu livro de poemas Les Orientales proclamava a «inutilidade» da poesia, lançado assim a doutrina da «arte pela arte» - isto é, de uma arte que valia apenas como criação de beleza, alheia a quaisquer preocupações de intervenção na vida prática.
Ao longo de todo o restante século XIX veremos manifestarem-se na literatura europeia estes dois modos de conceber a arte: como busca desinteressada e gratuita de beleza, expressa numa rigorosa exigência de perfeição formal, e como veículo de ideias e agente catalisador do processo histórico, sobre o qual atua, mesmo quando parece pretender limitar-se a uma objetiva e impossível análise da realidade. Nos anos em que o nosso romancista iniciava a sua carreira literária, chegara-se, de certo modo, a uma síntese destas duas tendências aparentemente opostas. Assim, na poesia parnasiana, cujo timbre é sem dúvida o apuro formal, a busca de uma beleza serena e marmórea, vêm afinal ecoar as grandes inquietações intelectuais do século. Não se pede ao poeta que seja panfletário nem demagogo, que intervenha na vida prática – mas também não poderá ser um mero cinzelador de brincos verbais. Penetrado pela mentalidade positivista que domina, a partir do meio do século, a cultuar europeia, o poeta sente-se intérprete das aspirações e esperanças da Humanidade, chegada, segundo o pensamento de Comte, à idade científica. A ciência torna-se uma nova fé, e todas as disciplinas do saber aspiravam a organizar-se «cientificamente», tomando como modelo as ciências da natureza, cujo progresso fora espetacular. Mas, para a literatura, teve particular importância o desenvolvimento que as novas conceções vieram dar à investigação e crítica histórica: como vimos está na ordem do dia a história da humanidade, a pesquisa das suas origens e a explicação do seu processo evolutivo ao longo dos milénios (aquela paixão da Humanidade, traduzida em poemas cíclicos, que Eça risonhamente aponta como moda epidémica da sua geração, é uma expressão lírica desse pendor positivista). A visão do passado humano, a evocação dos mitos e dos deuses mortos, a pintura dos grandes movimentos de povos, a caminhada gigantesca da História, em suma, ofereciam aos artistas grandiosos temas, que se configuravam naturalmente na forma escultural, tersa e máscula do verso parnasiano; e compreende-se que uma literatura inspirada pelo culto da ciência, pela nova idolatria das leis e dos sistemas, tivesse o horror das ideias vagas expressas em formas descosidas e fáceis, e procurasse um verbo exato, nítido e rigoroso.
Eça reflete na sua obra o duplo pendor do século, que em certa medida parece corresponder a exigências íntimas da sua natureza: a literatura será para ele exigente busca da beleza, exaltante aventura no mundo das formas, mas também instrumento de intervenção, pelo menos expressão de um julgamento moral sobre a vida e os homens.
A sua adesão à estética parnasiana, ele mesmo a descreve com a ironia e o distanciamento habituais («éramos assim em 1867»), na longa introdução à Correspondência de Fradique Mendes, texto onde o eu do autor é tratado como personagem-comparsa, em traços levemente humorístico. A admiração juvenil pelos grandes mestres do parnasianismo, Baudelaire, Théophile Gautier e Leconte de Lisli, o culto fanático da forma irrepreensível, o repúdio do sentimentalismo confessional, aparecem como traços dominantes desse esboço, ao evocarem-se «os santos entusiasmos com que nós recebíamos a iniciação dessa Arte Nova, que em França, nos começos do segundo império, surgira das ruínas do Romantismo como sua derradeira encarnação, e que nos era trazida em Poesia pelos versos de Leconte de Lisle, de Baudelaire, de Coppée, de Dierx, de Mallarmé, e de outros menores. (...) A Forma, a beleza inédita e rara da Forma, eis realmente, naqueles tempos de delicado sensualismo, todo o meu interesse e todo o meu cuidado!».
Mas esse culto da beleza, que aliás, como é sabido, já na segunda geração parnasiana e nomeadamente em Leconte de Lisle aparece menos gratuito, contagiada que fora a literatura pelas ingentes preocupações do século «científico» e historicista, em breve iria o jovem escritor, se não ultrapassá-lo, pelo menos subordiná-lo a novos objetivos.
«alguns anos passaram,» - continua o romancista na citada introdução à Correspondência de Fradique Mendes» trabalhei, viajei, melhor fui conhecendo os homens e as coisas. Perdi a idolatria da Forma. Não tornei a ler Baudelaire.»
Em 1871, ao participar no ciclo das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, Eça repudia abertamente a ideia da arte pela arte, como última e indesejável emanação do Romantismo, ao qual por então ataca frontalmente; e, sob a influência de Proudhon, defende um conceito de arte comprometida, porque posta ao serviço daquela revolução – ação pacífica» - que Antero de Quental e o seu grupo apresentavam como programa de renovação nacional.
Na sua conferência O Realismo como nova expressão da arte, Eça propunha que a literatura se inspirasse na mesma «ideia-mãe» que se ia impondo por toda a Europa nos domínios da ciência, da política e da vida social: essa ideia era Revolução. Com efeito, influenciado pela literatura de Taine, crítico e historiador literário de formação positivista, cuja Histoire de la Littérature Anglaise se publicara em 1863, considerava agora a obra de arte como produto da raça, do meio e da circunstância histórica – e a partir desse conceito denunciava a inautenticidade da literatura que se cultivava então em Portugal e que de modo nenhum correspondia nem às características nacionais nem ao espírito da época. Era o sentimentalismo plangente, o erotismo hipocritamente angelizado, a retórica balofa dos lugares-comuns humanitaristas e patrióticos – em suma, a «impostura oficializada».
A essa literatura enervante e empobrecedora, o Realismo opunha a pintura objetiva, analítica e rigorosa do real – especialmente da sociedade contemporânea – a busca da verdade sem idealizações deformadoras nem indiscretas expansões de sentimento individual. Como já fizera Proudhon, Eça apresentava os quadros de Courbet, um dos paladinos do Realismo na pintura, e o romance de Gustave Flaubert Madame Bovary (1857), como exemplos dessa nova arte baseada na observação do real, empenhada em surpreender a verdade sem imposturas, e por isso bem adequada às aspirações do século. Essa pintura da verdade, que se desejava objetiva e imparcial, conduzira no entanto, contrariamente ao imoralismo que muitos lhe assacavam, a um julgamento de valor, implicitamente retomado pela condenação do vício e pela exaltação proudhoniana do trabalho e da virtude. Mas estas preocupações de doutrinação moral e cívica, se condenavam a arte pela arte, não excluíam a exigência de apuro formal: pelo contrário, uma arte que busca retratar a autenticidade específica de cada fenómeno necessita de meios de expressão extremamente aperfeiçoados, capazes de captar e restituir com nitidez e relevo a realidade sentida no seu modo único e inconfundível de ser. Isto é, a pintura do real pressupõe uma técnica perfeita e conduz assim à criação de objetos de beleza.
Só que, enquanto Flaubert se recusa a aceitar que a obra de arte sirva de tribuna a qualquer doutrina – filosófica, política, moral ou outra – e, proclamado que «le but de l’art est le beau avant tout», faz da qualidade da expressão o primeiro cuidado do romancista – Eça, empenhado com o seu grupo numa tarefa de revolução cultural, dá naqueles anos a prioridade à missão social, pedagógica da literatura; por isso se França e por vezes já em Portugal, os ataques daqueles que iludidos pela impassibilidade de cientista assumida pelo escritor ante o seu tema, e ofuscados pelo requinte de uma expressão sabiamente trabalhada, viam no Realismo um mero processo formal.
A conceção de literatura expressa nesta conferência de 1871 virá em breve a ser ilustrada pelo escritor na sua criação romanesca.
Entretanto, em França, já o realismo descomprometido e artístico de Flaubert ia desembocando no Naturalismo, de raiz positivista. Aliás, na sua conferência do Casino, ao fazer a apologia do Realismo, Eça aparece já tocado, por influência de Taine, dessa visão determinista que conduziria à criação do romance naturalista: nesta perspetiva, a obra literária é determinada, condicionada de maneira decisiva por circunstâncias que lhe são exteriores. O naturalismo, com os irmãos Goncourt e sobretudo com Zola, intentará demonstrar a tese de que toda a conduta e destino humano são produto da fisiologia e do meio social. Dai a preferência pelo tema da hereditariedade – fatalidade biológica – que serve de espinha dorsal à longa série de romances de Zola Les Rougon – Macquart (1871-1893), cujo subtítulo vale um programa: Histoire naturelle et sociale d`une famille sous le Second Empire.
Inspirado nas ciências da natureza, quanto ao espírito e quanto aos métodos, o naturalismo preconizava a criação do romance a que Zola chamava «experimental», e cujo objetivo consistia em verificar, por meio da história narrada, as leis fisiológicas ou sociais deduzidas da observação da realidade. «Au bout», escrevia Zola, «il y a la connaissance de l´homme, la connaissance scientifique, dans son action individuelle et sociale» E, dando assim a conhecer ao público a verdade sobre o homem e o meio, o romancista tornava-se um agente do progresso da sociedade. A este tempo, a exaltação romântica que ainda lampejava nas grandiosas evocações históricas dos parnasianos ia-se apagando: a «questão social» avolumava-se a nova ciência que Comte fundara, a sociologia, divulgava-se, o espírito científico convidava à observação in vivo – de modo que , como tema literário, a Humanidade cedia o passo à sociedade.
Quando, em 1873, Eça publica a sua primeira narrativa de cunho realista, o conto Singularidades de Uma Rapariga Loira, estas ideias tinham dado já em França abundantes frutos. Estava publicada quase toda a obra dos Goncourt, e os primeiros volumes dos Rougon-Macquart.
Eça lançou-se, com o seu ardor e a sua viva recetividade, na esteira da literatura realista - naturalista (é difícil delimitar com exatidão os dois termos, sobretudo no caso português). O inquérito a um meio social restrito, a preocupação com a influência exercida pela hereditariedade, o temperamento e o meio, incluindo a educação – são tributos pagos pelo jovem romancista à voga do naturalismo naqueles anos. E, através de tudo, mantém-se o empenho assumido pelo grupo das Conferências de contribuir para a renovação da mentalidade portuguesa, denunciando os vícios e estigmatizando os ridículos de um romantismo atardado, de uma ignorância retrógrada e de um sistema político inepto e corrupto.
A literatura, naqueles anos 70, é para Eça uma forma de combater e um ato de pedagogia: «...O Primo Basílio», escreve em 1878 a Teófilo Braga, «não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Amaro é um empecilho, mas os Acácios, os Ernestos, os Basílios, são formidáveis empecilhos; são uma bem bonita causa de anarquia no meio da transformação moderna; merecem partilhar com o Padre Amaro da bengala do homem de bem.»
Pela mesma altura, em carta a Rodrigues de Freitas, jornalista ensaísta de mérito que havia de colaborar na Revista de Portugal, assumia o mesmo tema num tom mais decididamente militante: «o que importa é o triunfo do Realismo, que ainda hoje méconnu e caluniado, é todavia a grande evolução literária do século e destinada a ter na sociedade e nos costumes uma influência profunda. O que queremos nós com o Realismo? Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau por persistir em se educar segundo o passado». E concluía afirmando que o realismo «é um auxiliar poderoso da ciência revolucionária!» O romancista parece animado de uma confiança sem sombras na excelência da doutrina literária que então atingia o seu apogeu, na França republicana e socializante. É desse ano o prefácio – de que só Padre Amaro. Aí, depois de se defender da infundada acusação de ter plagiado o livro de Zola La Faute de l´Abblé Morret (e foi essa a única parte que veio a publicar), Eça proclamava com desenvolta segurança a superioridade do naturalismo: «O naturalismo é a forma científica que toma a arte, como o positivismo é a forma experimental que toma a filosofia.
“Tudo isto se prende e se reduz a esta fórmula geral: que fora da observação dos factos e da experiência dos fenómenos o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade. (...) Desde que se descobriu que há no mundo uma fenomenalidade única, que a lei rege os movimentos dos mundos não difere da lei que rege as paixões humanas, o romance, em lugar de imaginar, tinha simplesmente de observar. E conclui afirmando Claude Bernard, médico e Biólogo contemporâneo, cujo método experimental servia de modelo ao labor literário do autor dos Rougon-Macquart.
Não terá sido por acaso que estas páginas ficaram inéditas, num borrão a lápis: Eça apercebeu-se por certo do dogmatismo esquemático que as informava. Dir-se-ia que foram escritas num esforço de autoconvencimento, como do discípulo que repete a «sebenta» do mestre. Na realidade, o feitio literário do escritor que se estreara com os folhetins apaixonados da Gazeta de Portugal ficara sempre constrangido na gaiola estreita do determinismo positivista, que se propunha, em arte, refrear o voo livre da imaginação.
As dificuldades que sentia em se confinar ao modelo do romance «experimental», atribuía-as nesse tempo, é certo, ao afastamento em que vivia do Portugal que desejava retratar: «Longe do grande solo de observação, em lugar de passar para os livros, pelos meios experimentais, um perfeito resumo social, vou descrevendo, por processos puramente literários e a priori, uma sociedade de convenção, talhada de memória.» E deduz que só tem dois caminhos – ou regressar a Portugal, para trabalhar «por processo experimental», refugiar-se na «literatura puramente fantástica e humorística».
A fantasia e o humor que, aos 33 anos, considerava como «refúgio», remedeio, eram na realidade constantes da sua personalidade de artista, que naquela época, sob a influência dominadora da atmosfera cultural que respirava, ele se esforçava por subalternizar (no caso do humorismo) ou abafar mesmo (no caso da fantasia), a fim de realizar cabalmente o programa de escola. Mas, enquanto arduamente persistia na intenção de realizar uma obra (as Cenas Portuguesas ou Cenas da Vida Portuguesa) que correspondesse ao modelo naturalista de estudo da vida contemporânea, por sectores socioprofissionais – concedia a si próprio, nas pausas desse trabalho sempre interrompido e sempre exasperante, algumas fugas de fantasia e humor. Assim escreveu O Mandarim, A Relíquia e a maior parte dos contos postumamente publicados em volume. As suas qualidades de fino observador combinam-se aí, numa rara síntese, com a irisada fantasia e o humor inimitável. Aliás, não tardaria que os ventos da cultura europeia virassem, soprando já de feição àquelas tendências do seu feitio de artista.
Para o final do século, o naturalismo, expressão literária do positivismo, entra em crise como a doutrina filosófica que o inspirava. O avanço da ciência, que no meado do século conduzira ao orgulhoso sentimento de confiança nas leis imutáveis da natureza e no homem que as soubera deduzir, acelerara-se prodigiosamente no último quartel do século e abria agora perspetivas insuspeitadas sobre a complexidade do universo: a luz da ciência, à medida que se erguia, revelava cada vez melhor a imensidão dos problemas e o carácter provisório dos resultados. As certezas positivistas eram abaladas cada dia pelas descobertas feitas sobretudo nos domínios da física e das matemáticas. O espírito humano tendia cada vez mais a procurar fora da ciência as respostas para a inquietação que o trabalhava, em lugar de esperar dela, como queiram os positivistas, uma verdade definitiva da qual surgira no futuro a felicidade e a concórdia entre os homens. «A ciência», escrevera o físico Berthelot, «é a benfeitora da Humanidade. Reclama hoje ao mesmo tempo a direção intelectual e a direção moral das sociedades.» Agora, o matemático Poincaré afirmava humildemente que a ciência «é antes de mais nada uma classificação, uma maneira de aproximar factos que as aparências separam»; limita-se a ser «um sistema de relações».
A esta despromoção da ciência, destituída da categoria de quase religião que o comtismo lhe dera, vinha associar-se em muitos espíritos um desgosto da civilização contemporânea, marcada pela arrancada do progresso técnico. Era sem dúvida prodigiosa a transformação operada nas condições da vida material pelos novos inventos, mas enquanto os benefícios da transformação não atingiam os mais desfavorecidos da fortuna, o progresso servia apenas para acentuar de forma clamorosa as desigualdades e injustiças sociais. Por outro lado, a civilização moderna, uniformizadora e descaracterizadora, aparecia aos espíritos requintados como uma detestável ameaça de vulgaridade e monotonia. E o excesso de cultura acumulada, os milhões de páginas impressas sobre todo o divino e todo o humano despertavam o sentimento de que nada mais havia a dizer de original e de novo. Este desgosto da hipercivilização, sentimento tão característico do fim de século, marca muitas das páginas de Eça de Queirós na última fase da sua carreira.
A literatura reflete a rejeição do positivismo e do cientismo, a busca do mistério, a fuga a um que se vai estandardizando, um renovo de idealismo que se afirma, na teoria poética dos simbolistas, pela busca de uma transcendência de que o real sensível não é mais do que imagem ou «correspondência». O próprio romance, domínio eleito da observação naturalista, vai, em muitos casos, renunciando à verificação de leis da fisiologia, relatar a aventura interior do europeu moderno, saturado de racionalismo e de experiências culturais, que busca, na arte, no prazer ou no transcendente, saciar a sua fome de absoluto de novo desperta.
O mistério, o maravilhoso, as potências do inconsciente, o arrepio do sobrenatural sob formas diversas (desde um neocristianismo místico e contemplativo até ao espiritismo, passando pelas religiões orientais, pela teosofia e pelo ocultismo) atraem cada vez mais os espíritos. Eça, que já muito antes, numa carta de Paris, observava o declínio do naturalismo em literatura, dá numa das suas crónicas reunidas do volume póstumo Notas Contemporâneas, o panorama, ágil e penetrante fixado, da nova sensibilidade que desperta. A crónica, Positivismo e Idealismo, tem a data de 1893: «...esta reação não é somente tentada contra a política, mas contra a estrutura geral da sociedade contemporânea, tal como a tem criado o positivismo científico. Sobre todas as formas da atividade pensante se revela, se alastra, na geração nova, esta reação (...) «Em literatura, estamos assistindo ao descrédito do naturismo. O romance experimental, de observação positiva, todo estabelecido sobre documentos, findou (se é que alguma vez existiu, a não ser em teoria). (...) A simpatia, o favor, vão todos para o romance de imaginação (...)». E, depois de examinar os mesmos efeitos em diversos ramos da atividade intelectual, demora-se no aspeto religioso, aquele onde é mais notável a viragem: «É uma outra e renovada ansiedade de descobrir, neste complicado universo, alguma coisa mais do que força e matéria; de dar ao dever uma sanção mais alta do que a que lhe fornece o código civil; de achar um princípio superior que promova e realize no mundo aquela fraternidade de corações e igualdade de bens, que nem o jacobinismo nem a economia política podem já realizar; e de achar, enfim, alguma garantia da prolongação da existência, sob qualquer forma, para além do túmulo. (...) Em suma, esta geração nova sente a necessidade do divino. A ciência não faltou, é certo, às promessas que lhe fez: mas é certo também que o telefone, o fonógrafo, os motores explosivos e a série dos éteres não bastam a calmar e a dar felicidade a estes corações moços.»
Embora se limite a descrever, como puro observador, o movimento a que assiste, e o situe apenas na «geração nova», embora, no final do artigo, proponha como esperança para o homem futuro uma fórmula conciliatória de razão e imaginação, a verdade é que, queira ou não queira, a simpatia lhe foge irresistivelmente para a segunda. Ao bater os cinquenta anos, a sua fé naturalista apresenta-se, como a da geração nova, fortemente abalada: «O positivismo científico (...) considerou a imaginação como uma concubina comprometedora, de quem urgia separar o homem; - e, apenas se apossou dele, expulsou duramente a pobre e gentil imaginação, fechou o homem num laboratório, a sós com a sua esposa clara e fria, a razão. O resultado é que o homem começou a aborrecer-se monumentalmente e a suspirar por aquela outra companheira tão alegre, tão inventiva, tão cheia de graça e de luminosos ímpetos, que de longe lhe acenava ainda, lhe apontava para os céus da poesia e da metafísica, onda ambos tinham tentado voos tão deslumbrantes. E um dia não se contém, arromba a porta do laboratório (...) e corre aos braços da imaginação, com quem larga a vaguear de novo pelas maravilhosas regiões do sonho, da lenda, do mito e do símbolo.»
Continuava bem atualizado, sensível como sempre aos movimentos que agitavam o século, e deles partilhando com a pronta resposta da inteligência e do gosto: também ele, de certo modo, arrombara a porta do laboratório e saíra para o largo espaço livre da fantasia.
A obra romanesca dos últimos anos documenta bem a evolução que o escritor sofrera, em sintonia com o seu tempo. Os temas de lenda e poesia, a religiosidade ingénua assumida numa atitude estetizante (a fazer pintura dos primitivos medievais); o lugar cada vez maior concedido nas suas páginas à emoção, à ternura, ao humor tingido de desencanto; a renúncia ao programa de doutrinação cívica e revolucionária, à demonstração de teses e à «anatomia dos caracteres» - tudo isso revela em Eça o progressivo afastamento do padrão naturalista e a impregnação pela atmosfera anti-positivista, espiritualista do final do século.
Do século em que não se limitou a viver: do século que absorveu, de que se impregnou, sem no entanto perder a respeito dele a lucidez crítica e o empenho profundo de o compreender.